segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Tradução - Carta de Karl Marx a Ferdinand Lassalle, julho de 1861

Dando continuidade a alguns exercícios de tradução, coloco à apreciação crítica mais uma tentativa. Trata-se de uma carta escrita por Marx a Ferdinand Lassalle, em julho de 1861, em que é possível vislumbrar - a partir de esclarecimentos que Marx faz a Lassalle a respeito da interpretação que fizera do livro deste último chamado Sistema dos Direitos Adquiridos - alguns indícios do modo como o velho Mouro pensava as relações entre o direito e o desenvolvimento econômico da sociedade. 

O sentido da tão discutida relação entre infraestrutura e superestrutura - apresentada de maneira muito sintética no célebre Prefácio de 1859 - ganha aqui, mesmo que de modo muito indicativo, nuances aparentemente paradoxais. Digo aparantemente paradoxais, porque a afirmação de Marx de que "a representação jurídica de determinadas relações de propriedades, por mais que se origine delas, não é, por outro lado, congruente com elas e nem pode sê-lo" deve soar um absurdo para aqueles que aprenderam, consoante a uma visão determinista, que as relações entre infraestrutura (relações de propriedade) e a superestrutura (representações jurídicas) são de congruência absoluta. Se a afirmação não viesse do próprio Marx, ela seria taxada pejorativamente de revisionista.

O que Marx, nesta afirmação en passant, permite descortinar é, ainda de forma muito geral, a autonomia relativa da esfera do direito frente a esfera econômica. A incongruência entre as representações jurídicas e as relações de propriedade decorre do fato de cada uma delas ter legalidades próprias, de constituírem complexos sociais que possuem dinâmicas internas específicas, critérios imanentes característicos e que as relações entre ambas, embora sejam marcadas por um condicionamento basilar do momento da produção material da vida social (momento predominante) sobre o momento da regulação social destas relações de produção, devem ser entendidas a partir de uma perspectiva de desenvolvimento desigual. Nem o direito é um epifenômeno da economia, nem é uma projeção etérea de uma subjetividade nefelibata.

Não se deve entender esta incongruência em sentido gnosiológico, isto é, como um erro de concepção do sistema de representações jurídicas com relação às relações de propriedade. Se o problema fosse gnosiológico, a solução estaria em se elaborar, no pensamento, um sistema lógico-jurídico perfeitamente adaptado a determiado status quo. E, para Marx, obviamente não se trata disso, como fica claro nas passagens da carta em que ele fala sobre as apropriações supostamente mal-entendidas que as gerações posteriores fazem das realizações das gerações passadas (o uso irônico desta expressão é evidente e deve ser interpretado como um alerta de Marx a Lassalle) .

Os usos comparativos, trans-geracionais de determinadas conquistas históricas da humanidade serão sempre "mal-entendidos", uma vez que cada geração olha para o passado tendo em vista as questões do presente e não é possível, exceto de maneira mistificadora, transpor mecanicamente experiências históricas de um tempo para outro. Como ele dissera no 18 Brumário, a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos, mas isso ocorre não por uma maldição transcendente qualquer ou um fado do destino. Trata-se da maneira mesma da humanidade se reconhecer como tal: produzida por si mesma no interior desta epopeia histórica sobre a crosta deste planeta. 

É claro que, nesta carta, Marx não apresenta de maneira desenvolvida as relações entre direito e economia. Mas, a partir dela, é possível fazer inferências interessantes e somente a partir da pesquisa da realidade atual será possível descobrir como é que estas coisas estão. Afinal de contas, a obra do revolucionário alemão não é um conjunto de revelações, mas um arsenal de, como diria Vigotski, instrumentos psicológicos para entender o mundo em que vivemos. 

A escolha desta carta se deveu obviamente por conta do tema, mas também por não haver uma versão dela em português no marxists.org.

Espero que a tradução esteja boa.  




Carta de Karl Marx a Ferdinand Lassalle

Londres, 22 Julho de 1861.

Caro Lassalle,

Você deve atribuir o meu silêncio um tanto prolongado a diversas “circunstâncias atenuantes”. D´abord [primeiro], ainda não consegui – a despeito das mais positivas garantias que me foram dadas a este respeito – colocar as minhas finanças em ordem e, assim, fazer chegar às suas mãos as £ 10 restantes, o que me irrita mais do que qualquer outra coisa.

Secundo [segundo], desde há algumas semanas eu venho sofrendo de uma horrível inflamação nos olhos (ou melhor, pelo menos no último dia ou dois), o que torna qualquer leitura ou escrita extremamente penosa. 

Deixe-me começar agradecendo sinceramente aos seus esforços em favor da minha renaturalização. Ao menos, conseguimos comprometer o governo prussiano e demonstrar o completo vazio da sua assim chamada anistia. Acredito que a estranha tentativa de assassinato empreendida por O. Becker (não está claro nos jornais se ele é russo ou alemão) muito há de contribuir para um terrível fim da “nova era”. 

Tenho lido a segunda parte do seu trabalho (quando eu quis começar pela primeira, fui impedido pelo meu problema oftálmico), o que vem me proporcionando um imenso prazer. Eu comecei com o número II, porque o assunto me era mais conhecido, o que não me impedirá de subsequentemente considerar a questão em sua totalidade.

Você compreendeu mal, em certa medida, os comentários muito breves da minha última carta – sem dúvida, a culpa disso se deve ao modo como me expressei. D´abord [primeiro], por “liberdade de testamento” eu não me referia à liberdade de alguém fazer um testamento, mas à liberdade de fazê-lo com completa desconsideração à sua família. Na Inglaterra, o testamento enquanto tal é muito antigo e não pode haver a menor dúvida de que os anglo-saxões o adotaram a partir do direito [jurisprudência] romano. Que os ingleses, desde muito cedo, consideraram o Testaterbrecht[1] ao invés do Intestat[2] como normal é evidente pelo fato de que, desde a Alta Idade Média, quando o pater familias[3] morria ab intestato[4], apenas a parte obrigatória ia para sua esposa e seus filhos, de acordo com as circunstâncias, sendo que de ⅓ a ½ ia para a Igreja. Para os padres, se o pater familias tivesse feito o testamento, ele haveria de, visando a salvação de sua alma, destinar um certo quantum à Igreja. Em geral, parece ser provável que os testamentos, na Idade Média, tinham uma conotação religiosa e eram feitos no interesse do falecido e não dos sobreviventes. Mas o que eu estava querendo ressaltar (eu não estava, é claro, me ocupando da propriedade feudal) era que, depois da revolução de 1688, as restrições impostas ao assentamento das famílias, às quais o testador ainda estava juridicamente sujeito, foram suspensas. Que isto estava de acordo com o sistema de livre concorrência e com a sociedade baseada nela não pode ser seriamente questionado; nem mesmo que o direito romano, mais ou menos modificado, foi adotado pela moderna sociedade, porque a ideia jurídica de que o sujeito da livre concorrência tem de si mesmo corresponde àquela da pessoa romana (não que eu tenha qualquer pretensão de tratar aqui longamente desta importante questão, nomeadamente que a representação jurídica de determinadas relações de propriedades, por mais que se origine delas, não é, por outro lado, congruente com elas e nem pode sê-lo). 

Você mostrou que a adoção do testamento romano se baseia originaliter [orginalmente] em um mal-entendido (e continua assim, se se considerar o discernimento científico dos juristas). Mas disto não deriva, de modo algum, que o testamento em sua forma moderna – não importa sobre qual mal-entendido do direito romano os juristas o construíram – seja o testamento romano mal-entendido. Se fosse assim, poderia ser dito que toda realização de um período antigo adotada por um período posterior seria o passado mal-entendido.  É certo, por exemplo, que as 3 unidades, como teoricamente construíram os dramaturgos franceses nos tempos de Luís XIV, assentavam-se num mal-entendido do drama grego (e de Aristóteles como expoente do mesmo). Por outro lado, é igualmente certo que eles entenderam os gregos de uma maneira que correspondia exatamente às suas próprias necessidades artísticas. Daí a sua contínua adesão ao chamado “drama clássico” mesmo depois de Dacier e outros terem proporcionado a eles uma correta interpretação de Aristóteles. É também certo que todas as constituições modernas são largamente baseadas em mal-entendidos da Constituição inglesa, ao adotarem como essencial precisamente aquilo que aparece como decadente da Constituição inglesa – e que continua a existir na Inglaterra, de modo formal, somente per abusum [por abuso] –, por exemplo, num assim denominado Kabinett [ministério]. A forma mal-entendida é precisamente a forma geral. É a que se presta a um uso geral num determinado estágio do desenvolvimento da sociedade. 

Saber, por exemplo, se, sem Roma, os ingleses teriam ou não teriam a forma de testamento que eles agora têm (que, embora derive diretamente de e corresponda à forma romana, não é romana) é, para mim, de menor importância. Agora, deixe-me colocar a questão de outra maneira: não poderiam os legados (e sob o chamado testamento de hoje o chefe beneficiário se torna, de fato, meramente um legatário universal) terem surgidos por si mesmos da sociedade burguesa, sem qualquer referência à Roma? Ou, no lugar dos legados, apenas instruções escritas por parte do defuncti [defunto] para a alienação de seus bens?

O que ainda parece, para mim, não provado é se o testamento grego foi importado por Roma, embora tenha sido admitido que provavelmente foi isso que aconteceu. 

Você terá visto que a sentença contra Blanqui – uma das mais escandalosas que já se pronunciou – foi confirmada na corte de apelação [em segunda instância]. Estou, agora, curioso para ver o que os amigos dele em Brussels terão que me dizer. 

Minha esposa envia-lhe as mais gentis saudações.

Seu,

Karl Marx.

A respeito de Brockhaus, eu refletirei sobre a questão tão logo eu termine a segunda parte da Contribuição à Crítica da Economia Política. Até o presente momento, eu jamais enviei um manuscrito ao acaso.


[1] Direito à sucessão, à transmissão da propriedade via testamento.
[2] Direito à sucessão, à transmissão da propriedade via princípio da legitimidade tradicional, sem necessidade de testamento.
[3] Pai de Família.

Nenhum comentário: