terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Estou lendo "Para uma Ontologia do Ser Social", de G. Lukács

"O marxismo tradicional, porém, não é capaz de sustentar a disputa nem sequer com adversários deste porte. Surge no interior dele um falso dualismo entre ser social e consciência social, dualismo esse de cunho gnosiológico que, precisamente por isso, não se confronta com as questões ontológicas decisivas. Plekhanov, certamente o teórico de maior cultura filosófica do período anterior a Lenin, pelo que sei, foi quem produziu a formulação mais influente dessa teoria. Ele pretende determinar a relação entre base e superestrutura do seguinte modo: a primeira é constituída pelo ´nível das forças produtivas´ e das ´relações econômicas por elas condicionadas´. Sobre tal fundamento surge, já como superestrutura, o ´ordenamento político-social´. Só com base neste é que surge a consciência social, que Plekhanov define da seguinte maneira: ´a psicologia do homem social, determinada em parte pela economia e, em parte, pelo ordenamento político-social que surge desta´. Não é difícil ver que Plekhanov se encontra sob a influência das teorias do conhecimento do século XIX. Estas nasceram essencialmente do esforço de fundamentar em termos filosóficos as conquistas das ciências naturais modernas. E, como é compreensível, o modelo decisivo era formado pela física: de um lado, o ser determinado por leis, no qual a consciência não podia estar presente de nenhum modo; por outro, a consciência puramente cognoscitiva das ciências naturais, a qual, por sua vez, em virtude de seu próprio funcionamento, não parecia conter em si nada em comum com o ser. Sem entrar agora na problemática dessa teoria do conhecimento, observemos apenas que essa pura dualidade de ser privado de consciência e de consciência privada de ser tem uma relativa, mas só relativa, jusificação metodológica. Nem mesmo a introdução da vida orgânica na esfera de problemas dessa teorioa do conhecimento é capaz de perturbar o funcionamento desse modelo, já que, como vimos, a consciência dos animais, mesmo nos superiores, pode ser considerada ainda um simples epifenômeno do puramente natural. Apenas quando esse esquema da aparência gnosiológica é aplicada ao ser social é que se revela uma antinomia insolúvel, que quebra os limites estreitos da moldura proposta. A teoria do conhecimento burguesa resolve a questão por meio de uma pura interpretação idealista de todos os fenômenos sociais, com o que desaparece mais ou menos inteiramente, como é óbvio, o caráter ontológico do ser social. Isso acontece até mesmo com N. Hartmann.

Nesse processo, os sucessores de Marx acabam entrando em uma situação difícil. Já que Marx havia corretamente atribuído às leis econômicas uma validade universal análoga às das leis naturais, a tendência natural era aplicar de modo simplista, sem ulteriores concreções ou delimitações, esse tipo de leis ao ser social. Mas, com isso, chegava-se a uma dupla deformação da situaçao ontológica. Por um lado, o próprio ser social e, antes de tudo, a realidade econômica apareciam - em forte oposição com a concepção de Marx - como algo puramente natural (em suma, como um ser privado de consciência); vimos como, para Plekhanov, a consciência só surge como problema numa fase bastante tardia. A teoria de Marx, segundo a qual as necessárias consequências econômicas dos atos teleológicos singulares (que intervêm, portanto, no plano da consciência) possuem uma legalidade objetiva própria, nada tem a ver com essas teorias posteriores. A contraposição metafísica entre ser social e consciência está em nítida contradição com a ontologia de Marx, na qual todo ser social está indissoluvelmente ligado a atos de consciência (com pores alternativos). Por outro lado, surge - e isso se refere mais ao marxismo vulgar do que ao próprio Plekhanov - uma extrapolação mecânico-fatalista da necessidade econômica. A questão é conhecida, não carecendo, portanto, de uma crítica detalhada. Indiquemos apenas que a ´complementação´ neokantiana de Marx parte exclusivamente destas deformações e não das posições do prórpio Marx. Quando, no prefácio a Sobre a Crítica da Economia Política, ele diz: ´não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência´, isso não tem nada a ver com as ditas teorias. Por um lado, Marx não contrapõe ao ser social a consciência social, mas toda e qualquer consciência. Para ele, não existe uma consciência social especificada, como figura própria. Por outro lado, a primeira frase negativa nos diz que Marx está aqui simplesmente criticando o idealismo também a respeito dessa questão; e que está simplesmente reconhecendo a prioridade ontológica do ser social com relação à consciência. 

Engels percebeu bem que essas vulgarizações deformavam o marxismo. Nas cartas que endereçou a personalidades de destaque do movimento operário da época encontramos muitas menções ao fato de que, entre base e superestrutura, existem interações, que seria pedantismo ´derivar´ da necessidade econômica, de modo simplista, fatos históricos singulares etc. Em todas essas questões ele sempre teve razão, mas nem sempre conseguiu refutar os desvios do método marxiano em relação a seus princípios. Nas cartas a Joseph Bloch e a Franz Mehring, Engels até procura fornecer uma fundamentação teórica, inclusive com uma autocrítica voltada contra seus escritos e os de Marx. Na carta a Bloch, ele escreve: 

´segundo a concepção materialista da história, o favor determinante em última instância na história é a produção e a reprodução da vida real. Mais não foi afirmado, nem por Marx, nem por mim. Se agora alguém ditorce isso no sentido de que o fator econômico seria o único fator determinante, transforma aquela proposição numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura [...] exercem também a sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de modo preponderante a forma dessas lutas. Há uma interação de todos esses momentos, na qual, passando por essa quantidade infinita de casualidades, [...] o movimento econômico termina por se impor como necessário´.

 Sem dúvida, Engels expõe de modo correto muitos traços essenciais dessa situação, corrigindo alguns equívocos da vulgarização. Porém, quando tenta emprestar à sua crítica um fundamento filosófico, acreditamos que caia no vazio. A oposição complementar entre conteúdo (economia) e forma (superestrutura) não expressa adequadamente nem a conexão entre ambos, nem a sua diferenciação. Mesmo extraindo da carta a Mehring a definição da forma como ´o tipo e o modo pelo qual essas representações surgem´, não se avança muito. Engels sublinha aqui, de maneira correta, a gênese das ideologias, a autolegalidade relativa dessa gênese. Mas, no fim das contas, tampouco essa gênese deve ser entendida como relação ´forma-conteúdo´. Tal relação, como tentamos mostrar no capítulo sobre Hegel, é uma determinação de reflexão. Isso significa que forma e conteúdo, sempre e em todos os casos, determinam ao mesmo tempo (e só ao mesmo tempo) o caráter, o ser-propriamente-assim (inclusive a universalidade) do objeto singular, do complexo, do processo etc. Porém, justamente por isso é impossível que, na determinação de dois complexos reais diversos um do outro, um complexo figure como conteúdo e o outro como forma". 

LUKÁCS, G. Para uma Ontologia do Ser Social. Volume I. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 405-408.

Um comentário:

Revistacidadesol disse...


Que paralelepídedo esse, né cumpadi. E clareia tão pouco sobre marxismo isso, é uma espécie de escolástica marxiana.

Engels "cai no vazio"? Cai no vazio é o marxismo que sai em busca do ser do ser.

Abs do Lúcio Jr.