terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Estou lendo "Ensaios e Anseios Crípticos", de Paulo Leminski

3 Línguas

Latim

Latim é uma Arcádia, uma matemática: o latim de Erasmo e dos humanos é um código puro, um sistema fechado. O latim pertence ao mundo das essências: torneios vivos não têm acesso a ele. É aristocrático: deixa as locuções populares sem tradução. É como uma definição: não se renova.

O latim é paupérrimo em circunstâncias, riquíssimo em essências. 

O que é dito em latim, muda de natureza: pudenda, membrum virile, ante portas. A medicina legal ainda usa latim para falar de coisas inomináveis, inefáveis: aberrações sexuais, detalhes do intercurso carnal, etc.

É uma linguagem técnica, a mais apta para aquele tipo de raciocínio de que o latim é a fonte, o símbolo e o instrumento. O latém é a lógica encarnada. A lógica é uma geometria vista com os olhos do entendimento. "Nel occhio della mente" (Dante) = "in my mind's eye, Horatio" (Shakespeare).

Uma palavra em latim é uma categoria. Desfruta do estatuto categórico das ideias platônicas. Como um ideograma. 

Desde Linaeus, os animais e as plantas têm nome em latim: o nome científico. Carvalho é "quercus pedunculata". O rouxinol é o "icterus cyanesis". Esses pássaros não cantam. Essas árvores não respondem à primavera. São lugares numa escala.

Ditos em latim, plantas e bichos perdem tudo o que, porventura tenham de místico, folclórico ou regional.

Os homens do renascimento adotavam técnica mágica para se tornarem ideias Platônicas: traduziam o nome em latim. Num latim morto há séculos e presente apenas nos livros.

Ingleses. Franceses. Espanhóis. Holandeses. Alemães. Poloneses. Escritores traduziam seu nome nacional para o latim. Assim, o filósofo francês René Descartes virou Renatus Cartesius. Münzer virou Monetarius. Voss virou Votius.

O uso desse latim não é uma moda. É a declaração de que o pensamento só vige bem com esse equipamento. Porque o equipamento gerou o pensamento.

O ocidente, desde o renascimento, tem buscado fundar uma linguagem técnica, comparável ao latim, em línguas nacionais.

Algo dito em latim alcança de pronto uma universalidade, uma generalidade, um descarnamento e uma abstração, que são os objetivos do pensamento ocidental. Enquanto nos serviços desse tipo de pensamento, o latim é insubstituível. Matemática, sua herdeira direta.

Escrever nesse código fechado e acabado é uma "ars combinatoria", arte permutatória de torneios prontos, locuções consagradas, citações, alusões: arte de colagens. É uma álgebra.

Seus elementos são "loci", "lugares", expressões fixas, sujeitas a uma sintaxe extremamente ágil. Em latim, praticamente todas as possibilidades de combinação de palavras numa frase são lícitas. O pensamento, assim, pode ser escrito na sintaxe, com uma nitidez que as línguas nacionais modernas não permitem. Se tentarmos tal liberdade, é correndo o risco de sermos acusados de desvios: maneirismos, vanguarda, experimentalismo.

O Latim e as Coisas - A ciência ocidental nasce do pressuposto que o universo foi feito com ordem de Deus. É uni-verso, voltou para a unidade, a totalidade do Real. A ciência é uma tentativa (bem sucedida, diga-se de passagem) de descobrir essa ordem. Já fomos à natureza com a ideia feita que nela reside uma ordem. O sábio resigna-se: ele convive com as Essências.

A Grécia assistiu, entre apática e frenética - essa Grécia tão olímpica, à guerra do extermínio inexpiável entre filósofos e sofistas. O filósofo quer ver o ser além das palavras. O sofista o vê nas palavras. Diferença na distância do olhar. 

Hoje, com tanta semiótica, cibernética, semântica, cinésica, sintaxe e prossêmica por aí, nos meios universitários, estamos de novo numa era eminentemente sofística, onde os signos imperam e as coisas desaparecem em aporias indeslindáveis. Vivemos signos, e a civilização da comunicação é o paraíso do sofista. A língua materna dos sofistas, como todos sabem, é, nada mais, nada menos, que o latim. Um latim. Qualquer latim. Um latim, enfim.

Latim e as Pessoas - A vida do latinista é intelectual. Funda-se numa continuidade, na disciplina, em hábitos adquiridos laboriosamente, na manutenção de arquivos, livros riscados, cadernos de notas, busca de termos próprios, "diuturna et nocturna manu" (Horácio): perseguição de soluções, problemas abertos. 

"O estilo é o homem", disse Buffon, o homem que passava horas para acabar uma frase, dias para polir um parágrafo, anos para se dar por satisfeito. Vestia trajes de gala para escrever, o colibri é um pássaro.

Como Flaubert, biruta mais recente.

Disciplina e burocracia: o agudo ministro, o funcionário dado às letras.

A exegese de texto precede naturalmente a exegese da natura. Essa disciplina é a do cientista hoje: o renascentista já era um especialista. Diferença: o renascentista a usava em direção apenas de uma realidade privilegiada, o corpus dos textos. (Quanto mais dedutiva a ciência, mais renascentista: a experiência reporta-se a um corpus de fórmulas matemáticas). 

Latim é matemática, relatórios protocolares. Os neo-positivistas lógicos da escola de Viena definem a realidade como a soma dos relatórios protocolares. Relatórios protocolares = fichas de laboratório, registro de eventos, tabelas estatísticas e de frequência, latim, latim, puro latim.

Realidade é latim?


Inglês

É a língua do império. E, consequentemente, a segunda língua de todos nós.

A cada dia que passa, é maior o número de palavras em inglês no português que falamos. O anglicismo é, hoje, a regra.

É uma língua que está se impondo não pelas armas mas pela supremacia tecnológica e econômica da metrópole. 

O inglês nos chega através dos bens de consumo, através da publicidade, através das inovações tecnológicas, através do cinema, através da música pop, através de tudo. 

O inglês está reduzindo os dialetos locais do Império (espanhol, português, guarani, quetchua, aimará) à defensiva.

A grande economia natural da gramática inglesa (menos entrópica) leva nítida vantagem sobre a luxuriante complexidade das gramáticas do espanhol e do português. É mais fácil.

É a língua de um povo voltado para a ação (vikings, piratas, aventureiros, guerreiros, administradores). É uma língua ATIVA. 

Exportando a língua, os falantes do inglês estão exportando valores. Não apenas palavras. A classemedianização da sociedade brasileira equivale a uma norteamericanização.

O território que resiste mais bravamente a essa invasão da língua inglesa é a literatura.

Por seu caráter levemente arcaico, a literatura repele, com seus anticorpos, as investidas do agressor. A literatura brasileira terá que ser feita no melhor português. E colocar as palavras inglesas entre aspas.

Mas a vida pode mais que a literatura.

Estou vendo o dia em que vai pintar um livro importante na literatura brasileira chamado: "Go on", "From Now to Tomorrow", "Baby Brazil", etc.

Qual o modo mais eficaz de resistir a essa invasão? 

Aprendendo inglês, ora.


Português

A última flor do Lácio é um desastre.

Embora sejamos 140 milhões a falá-la (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau, Timor), o idioma de Camões continua sendo o túmulo do pensamento. 

Em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa.

Vejam só o que acontece com nosso maior prosador. Guimarães Rosa. Traduzidas para o francês, as obras de Rosa ("Grande Sertão", inclusive) perdem toda a sua aspereza jagunça, suas irregularidades, suas invenções. Rosa parece apenas uma bangue-bangue.

Agora, quem quer aprender português?

Nem os intelectuais e escritores do "boom" literário latino-americano recente o conhecem.

A língua portuguesa é um desterro, um exílio, um confinamento. 

Talvez não tenhamos valores literários suficientemente fortes para forçar nos estrangeiros o desejo ou a necessidade de aprender o português.

Que autores, daqui e além mar, teriam essa força?

Camões? Fernando Pessoa? Machado? Drummond? Oswald? Cabral? Rosa? A poesia concreta?

Não sei.

Sei que Pound aprendeu português nos anos 20 para ler Os Lusíadas, que ele considerava "full of sound os fury".

E dizem que Erasmo de Rotterdam aprendeu português para ler Gil Vicente no original.

A palavra mais incrível criada na língua portuguesa em Portugal foi "saudade".

A mais incrível palavra criada em português no Brasil foi "jeito".

Nós, brasileiros, temos que dar um jeito de tornar a língua portuguesa mais forte, isto é, capaz de assimilar ataques de corsários ou invasões estrangeiras.

Embora a língua portuguesa seja o idioma dos nossos ex-dominadores e colonizadores, é dela que é feita a substância da nossa alma.

In: LEMINSKI, P. Ensaios e Anseios Crípticos. Polo Editorial do Paraná: Curitiba, 1997, p. 40-44.

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