Em O Significado (ou Sentido)
Histórico da Crise da Psicologia, Vigotski argumenta a favor da necessidade de
elaboração de uma psicologia geral como projeto que almeje, ao mesmo tempo, discutir a
formulação das condições de cientificidade das disciplinas particulares da psicologia
(ele se concentra especialmente na análise do behaviorismo norte-americano, da
reflexologia russa, da psicanálise e da psicologia tradicional) e os
conhecimentos produzidos em seus âmbitos específicos, articulando-os com a necessidade
de garantir a unidade da psicologia através de uma psicologia geral que atuasse contra as tendências centrífugas presentes
no desenvolvimento dessas ciências particulares a partir do momento que cada
uma delas elevava o seu conceito essencial – derivado das descobertas em suas
investigações particulares – ao estatuto de princípio explicativo geral para
toda a ciência psicológica.
Para ele, esta tendência centrífuga se expressava
no modo como o desenvolvimento de cada disciplina particular convertia seus
conceitos específicos diferentes entre si em fatos também diferentes entre
si. O que era indubitável para uma corrente da psicologia – ele cita o exemplo
do Complexo de Édipo da psicanálise –, não passava de uma ilusão para outras
correntes. O estudo do comportamento, tão caro ao behaviorismo e à reflexologia russa, não comparecia sequer como campo de interesse para as outras disciplinas psicológicas. Cada uma agindo apenas no seu campo e referindo-se apenas a si mesma provocava uma independentização excessiva das suas descobertas. Ocorria, assim, um risco de que, sob a retórica de que não haveria
problema algum em existir várias psicologias paralelas (princípio democrático-burguês
de convivência mútua), se escondia a pretensão de cada disciplina se arvorar o
papel e a função social de psicologia geral, ou seja, de ciência cujos conceitos e princípios explicativos seriam válidos para explicar o objeto da psicologia como tal.
Vigotski não poderia ser
mais claro ao dizer que “o conceito
essencial que age como suporte da ciência, o que poderíamos denominar abstração
primária, não só está determinando o conteúdo das disciplinas particulares, como
também seu caráter integrador e, portanto, a forma de explicar os fatos, o
princípio explicativo essencial da ciência” (p. 215). É com a constatação da
existência desta tendência em que a abstração primária – o conceito essencial de
cada disciplina particular (a psique para a psicologia tradicional, o
inconsciente para a psicanálise e o comportamento para o behaviorismo e a
reflexologia) – busca automaticamente trazer consigo o seu correspondente princípio
explicativo (respectivamente, o subjetivismo, a sexualidade e o reflexo
condicionado) e estender a sua validade também automaticamente para toda a
ciência psicológica sem maiores problematizações que Vigotski está preocupado.
Segundo
ele, existiria, “pois, uma tendência a estabelecer um princípio explicativo
unitário e a que este atue a partir de fora dos limites em que nasceu a
ciência, convertendo-se desse modo num princípio explicativo, não mais das
categorias da realidade a que se referia no princípio, mas do sistema global da
realidade, e não só da ciência em que surgiu, mas do sistema científico em sua
totalidade. Esta tendência estaria na origem da rivalidade interdisciplinar
pela supremacia” (p. 217). Se, num primeiro momento, o
princípio explicativo nasce como categoria de realidade, isto é, como
reprodução ideal do movimento da realidade, tende, contudo, a superar este
âmbito e arvorar-se ao status de princípio explicativo geral. Assim, por
exemplo, a psicanálise, que tem o inconsciente como seu conceito generalizador,
teria a sexualidade como seu princípio explicativo correspondente. Supor a
integração da diversidade de fenômenos psicológicos sobre a base do conceito do
inconsciente teria como consequência tendencial querer explica-los a partir do
princípio da sexualidade. Vigotski afirma que esta consequência não é
inevitável, uma vez que mesmo no interior da psicanálise há correntes (Adler e
Jung) que, embora se fundem sobre o conceito do inconsciente, não aceitam o
princípio explicativo da sexualidade. Contudo, este fenômeno parece, como tendência, operar efetivamente na história da ciência.
Fica evidente, portanto, que
garantir a unidade da psicologia passa a ser um trabalho hercúleo. Se se trata
de disciplinas e correntes tão diferentes entre si, que contam com um acúmulo
de materiais tão heterogêneos, como unifica-los em torno de uma psicologia geral? Ele
responde: “Vimos que o substrato da unidade é dado fundamentalmente pela
abstração primária. Mas a união de material heterogêneo – como defende a
psicologia da Gestalt – não pode ser alcançada mediante a simples aposição da
conjunção ´e´, mediante a simples união ou adição das partes, de modo que cada
uma delas conserve o equilíbrio e a independência. A unidade consegue-se por
meio da subordinação e o domínio, por meio da renúncia das disciplinas
particulares à soberania em favor de uma ciência geral. (...) De forma que a
unidade é o que determina o papel, o sentido e o significado de cada domínio
isolado: isto é, não só determina o conteúdo da ciência, mas também a forma
explicativa a ser adotada, o princípio de generalização que, com o tempo, à
medida que a ciência evolui, se transformará em seu princípio explicativo” (p.
215-216).
O papel de mantenedor da unidade
da ciência cabe à abstração primária, ao conceito essencial, que dá o suporte à
estrutura teórica da ciência geral. A abstração primária, contudo, é o
resultado de uma análise crítica da história da ciência - tarefa a que Vigotski
se dedica neste texto - e não pode ser concebido como resultado de um simples processo de ultrageneralização de conceitos válidos para contextos particulares. Sendo resultado da crítica, a unidade que se alcança não
é aquela de tipo caleidoscópico tão comum ao atual post modern way of pseudoscience. É, por isso, que a afirmação
vigotskiana de que a unidade da psicologia só seria conseguida mediante a
subordinação das disciplinas particulares ao domínio da ciência geral pode parecer,
aos olhos relativistas que vicejam na cultura contemporânea, de um
autoritarismo old fashion. No entanto,
é preciso ressaltar que, para entender plenamente a amplitude do projeto
teórico a que almejara Vigotski, é preciso ter em mente que o que estava em
jogo era o futuro da ciência psicológica como ciência do novo homem, a ciência
da transformação socialista do homem, e não estava relacionada simplesmente à
produção de nichos de sobrevivência no mercado da competição acadêmica
Estudar este texto de Vigotski é fundamental não apenas para psicólogos, mas para todos aqueles que se interessam pela temática do método científico. É admirável perceber o modo como Vigotski fazia ciência - tão diferente do modo como comumente encontramos nos dias atuais.
O que fica acima é apenas uma pequena gota no oceano de questões a que ele se propõe e desenvolve neste texto. É, realmente, de uma beleza de tirar o fôlego para aqueles que conseguem se sensibilizar com o desprendimento pessoal de um homem que fez da busca pela verdade a divisa da sua vida.
VIGOTSKI, L. S. O Significado Histórico da Crise da Psicologia. In: Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 203-417.
VIGOTSKI, L. S. O Significado Histórico da Crise da Psicologia. In: Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 203-417.
Um comentário:
perfeito sua intertextualidade, amei, você poderia continuar e compartilhar comigo? me esclareceu uma visão obnubilada.
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