quinta-feira, 26 de abril de 2012

Dissertação de Mestrado: "Os Descaminhos da Bem-Aventurança: um estudo sobre a origem e os desdobramentos da concepção de crise paradigmática de Boaventura de Sousa Santos"

Recomendo a todos a leitura da dissertação de mestrado do Rodrigo Bischoff Beli, que contém uma análise da teoria sociológica de Boavetuntura de Sousa Santos. Como dizia Brecht, em tempos sombrios como os que vivemos, nada pode parecer natural. Se, por um lado, a dissertação pode contribuir com a criação de algumas rugas na nossa testa, por outro, isto é compensado pelo oferecimento de algumas ferramentas teóricas para podermos superar a indiferença.

Boa leitura a todos!

RESUMO

O presente trabalho trata sobre um aspecto específico, mas o mais central de toda a teoria de Santos, que é o da crise paradigmática da modernidade. Uma crise que seria ao mesmo tempo societal e do conhecimento. Embora recuse a qualificação, a teoria de Santos pode ser considerada dentro do espectro daquilo que chamamos de pós-moderno. Minha pesquisa teve como objetivo realizar uma análise desse aspecto da teoria de Santos, buscando revelar para além das características próprias de sua argumentação, as determinações históricas de sua formação.
É justamente o movimento histórico que constitui a teoria de Santos enquanto uma resposta específica a condição da luta de classes em seu estágio mais recente (desde pelo menos a década de 1970), mais especificamente no campo que se considera de esquerda (ou, ao menos, comprometido com uma forma - seja ela qual for - de transformação radical da sociedade). A teoria de Santos aponta para um posicionamento da esquerda bastante diverso daquele considerado tradicional. E isso não é um elogio, trata-se de um desvio idealista daqueles, que estaria vinculado (e isso é algo que precisa ser esclarecido de maneira mais adequada em um trabalho futuro, que não pode tardar de acontecer) aquilo que a filosofia formulou de pior, que é o irracionalismo.
Para se ter uma ideia de quanto isso é perigoso, estamos falando de um cientista, militante de esquerda, que formula um projeto de transformação societal baseado em elementos de uma corrente filosófica que, num passado não muito remoto, originou, dentro de certos condicionantes, uma visão de mundo completamente degradante, de uma perspectiva humanista, o cúmulo do reacionárismo, que foi o fascismo. Não se diz aqui que o pós-moderno é um novo fascismo, ou é o fascismo em sua nova faceta, mas isso já sugere que os elementos históricos que propiciaram o surgimento do fascismo estão presentes nos nossos dias, e que uma resposta de tipo semelhante não pode ser descartada. E pior, que ela pode estar sendo gestionada em um espaço que não se supunha.

Monografia de Especialização em Teoria Histórico-Cultural: "Questões de Método em Marx e em Vigotski e seus desdobramentos para a compreensão das relações entre indivíduo e sociedade: aproximações iniciais"

Monografia escrita por mim para receber título de Especialista em Teoria Histórico-Cultural pelo Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, em 2011.

RESUMO

A apropriação da obra de Vigotski tem sido atravessada por vários vieses interpretativos, que vão desde aquelas que pretendem integrá-la à heterogeneidade de leituras no interior do que se convencionou chamar de programa pós-moderno até aquelas que pretendem resgatar sua significação própria a partir dos seus fundamentos teórico-filosóficos marxistas e de sua vinculação ao projeto de construção de uma sociedade comunista. Este estudo integra-se nesta segunda linha de aproximação à obra vigotskiana e pretende, a partir de uma discussão que articule as formas como as questões de método aparecem em Marx e em Vigotski, compreender as linhas mais gerais que permitam um melhor enquadramento da problemática das relações entre indivíduo e sociedade.

"Estátuas", de Humberto Bodra


Abaixo o mastodonte de granito!
Força, todos juntos,
que as cordas já uivam
asfixiando como um urso
o pedestal.
Pronto! O homem de pedra
estrondeia e se estatela
no meio da praça.
Empunhemos as marretas e os
martelos!
(Foices não! Ainda uma vez não:
enfeites e armadilhas.)
Vamos, espatifem o seu olhar sereno
espicacem o seu vulto solene
sua testa larga, suas orelhas.
Desmoronem e esfrangalhem todos os
dinossauros
e suas cabeças de esclerose.
Dilacerem todas as múmias
e seus catecismos simplórios.
Profanem os altares do socialismo
científico
e todos seus lugares sagrados
pois é a hora dos iconoclastas
e o crepúsculo dos deuses.
Nos pedestais vazios
se quiserem
soergam a altiva Liberdade
com seu facho novaiorquino
e seus raios democráticos.
Sim. Façam tudo isso
mas, ao final, sepultadas as
caricaturas
ao menos por curiosidade,
abram seus livros.
Desvencilhados de monumentos
e fetiches
desacorrentem seu pensamento crítico
derrubem também as comportas
com que cercam em pântano
o fluir de sua dialética,
e a louca paixão pela humanidade.
Então outra vez
companheiro Carlos e Frederico
companheira Rosa e companheiro
Ilitch
serão vocês
perigosos
outra vez.

Humberto Bodra (17/08/91)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

"A Infanticida Marie Farrar", de Bertolt Brecht

1
Marie Farrar, nascida em Abril, menor
De idade, raquítica, sem sinais, órfã
Até agora sem antecedentes, afirma
Ter matado uma criança, da seguinte maneira:
Diz que, com dois meses de gravidez
Visitou uma mulher num subsolo
E recebeu, para abortar, uma injeção
Que em nada adiantou, embora doesse.
      Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

2
Ela porém, diz, não deixou de pagar
O combinado, e passou a usar uma cinta
E bebeu álcool, colocou pimenta dentro
Mas só fez vomitar e expelir
Sua barriga aumentava a olhos vistos
E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.
E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.
Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.
      Os senhores, por favor, não fiquem indignados.
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

3
Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.
Havia pedido muito. Com o corpo já maior
Desmaiava na Missa. Várias vezes suou
Suor frio, ajoelhada diante do altar.
Mas manteve seu estado em segredo
Até a hora do nascimento.
Havia dado certo, pois ninguém acreditava
Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.
      Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

4
Nesse dia, diz ela, de manhã cedo
Ao lavar a escada, sentiu como se
Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.
Conseguiu no entanto esconder a dor.
Durante o dia, pendurando a roupa lavada
Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada
Que iria dar à luz, sentindo então
O coração pesado. Era tarde quando se retirou.
      Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

5
Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:
Havia caído mais neve, ela teve que limpar.
Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.
Somente de madrugada ela foi parir em paz.
E teve, como dia, um filho homem.
Um filho como tantos outros filhos.
Uma mãe como as outras ela não era, porém.
E não podemos desprezá-la por isso.
      Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

6
Vamos deixá-la então acabar
De contar o que aconteceu ao filho
(Diz que nada deseja esconder)
Para que se veja como sou eu, como é você.
Havia acabado de se deitar, diz, quando
Sentiu náuseas. Sozinha
Sem saber o que viria
Com esforço calou seus gritos.
      E os senhores, por favor, não fiquem indignados
      Pois todos precisamos de ajuda, coitados.

7
Com as últimas forças, diz ela
Pois seu quarto estava muito frio
Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não
sabe quando) deu à luz sem cerimônia
Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela
Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo
Meio enrijecido, mal podia segurar a criança
Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.
      Os senhores, por favor, não fiquem indignados
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

8
Então, entre o quarto e o sanitário - diz que
Até então não havia acontecido - a criança começou
A chorar, o que a irritou tanto, diz, que
Com ambos os punhos, cegamente, sem parar
Bateu nela até que se calasse, diz ela.
Levou em seguida o corpo da criança
Para sua cama, pelo resto da noite
E de manhã escondeu-o na lavanderia.
      Os senhores, por favor, não fiquem indignados
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

9
Marie Farrar, nascida em abril
Falecida na prisão de Meissen
Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar
A fragilidade de toda criatura. Vocês
Que dão à luz entre lençóis limpos
E chamam de "abençoada" sua gravidez
Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois
Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.
      Por isso lhes peço que não fiquem indignados
      Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.

BRECHT, B. Poemas: 1913-1956. São Paulo: editora 34, 2000, pp. 40-43.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

"Durante a Festa", de Oswald de Andrade

(De São Paulo) - Do salão gigantesco, vem um som cadenciado e igual que dá ideia dum batuque imenso, onde se agita, rodopia e estaca a multidão mais vária e pitoresca da cidade. É o povo que se diverte, é o povo que se agita, é o povo que se entusiasma. Estamos no baile da Cruz Vermelha Russa, que conseguiu reunir no Estádio do Pacaembu um público duas vezes superior ao das grandes partidas de futebol entre São Paulo e Rio. Uma renda que supera a dos finais de campeonato. Mas não é só o povo. O milionário Horácio Lafer reteve três mesas de proscênio. No aristocrático "Cantinho Russo" brilham o banqueiro Nelson Otoni de Resende e o industrial Roberto Simonsen com suas mesas faustosas. Os artistas e os literatos deram-se ponto de encontro ao ar livre. Yeda e Murilo Miranda, Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Maurício Loureiro Gama, Tarsila e Luis Martins, Caio Prado Júnior, Oswald de Andrade Filho, Paulo Emílio e inúmeros outros. No pano de fundo do palco um mapa imenso e colorido onde a URSS parece engolir uma faixa pequenina de terra a Oeste.

Vendendo bilhetes de tômbola, cigarros, flores, passam pelo público, nos seus trajes característicos, as russas esbeltas, brancas, sorridentes. Entre elas fulge a sra. Bela Karawaiwa da Silva Prado.

Nesses tumultos, são sempre os isolados e os refratários que me chamam a atenção. Vejo um homem velhusco encostar-se friamente a um pilar. Parece não dar nenhuma atenção à literatura dos alto-falantes, às bandas militares, mararciais e coloridas, que se revezam no palco, aos bonecos de Don e do Kuban, que, com suas blusas bordadas e gritantes e suas bombachas de cor, Presas a botas curtas e lustrosas, executam números frenéticos, rodopios espetaculares, pulos de urso e voos de cobra. Parece que o exército-bólido de Vatutin desceu sobre a cena para magnetizar o mundo. Aproximo-me do homem silencioso. Interpelo-o. – Não está gostando?

- Estou aqui esperando minha mulher... Ela me deixou aqui e tenho receio de me ausentar...

O homem falava com a voz um pouco rouca e gasta.

- Não dança, não brinca...

- Já dancei muito, já abusei... Mas, de dois anos para cá, sou escudeiro. Sim, senhor. Escudeiro de minha mulher. O senhor estranha? Sou casado com uma russa, uma russa nascida em Stalingrado. Imagine! Ela é patronesse desta festa. Olhe, lá vai ela!

Nesse momento vi uma gigantesca figura ariana, aberta num sorriso de dentes perfeitos, num traje camponês dos Urais, avental e auréola de seda branca, atravessar o salão repleto, em reta, sem um tropeço, levando nas mãos duas bandejas cheias.

- Que quer o senhor que um homem miúdo como eu faça com esse artilheiro? E note que são todas assim. E assim é toda a Rússia. Nós pensávamos que a Alemanha é que era forte. Que blefe! Veja essa raça virginal que se alimenta de borche e de vodka! Minha esposa, como qualquer das suas conacionais é capaz de empurrar um tank nas lamas da Bessarábia e de bombardear Berlim num Stormovique!...

- É, por isso que eles ganham a guerra - arrisquei!

Os olhos do homem sumido se avivaram de repente. Perguntou-me:

- E o senhor pensa que nós consentiremos? Nós os capitalistas, os últimos. Olhe, meu amigo, desde Stalingrado que estamos tratando de rejuvenescer quem destruímos inadvertidamente. Sabe, Hitler é um grande idiota! Traiu-nos. E agora estamos no maior dilema da história...

- Não entendo...

- Precisamos matá-lo, mas... mas... Certas ressurreições são difíceis! Também... o povo acordou...

- Por isso é que o senhor está encostado nessa quinta-coluna do salão...
- Humildemente, meu caro. Outros há nos tronos, nos bancos, nas cadeiras fofas do poder. Todos bons democratas como eu.

Sorriu enigmático, fino e terminou:

- No tabuleiro internacional, haverá ainda muita surpresa. O senhor vai ver!

24/03/1944.

ANDRADE, Oswald. Telefonema. 2ª Ed. Coleção Obras Completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 2007, pp. 108-110.