sábado, 21 de janeiro de 2012

"Ainda não acabou a mania do discurso bonito", de Manuel Bandeira

O brasileiro da geração que fez a República era um sujeito que usava fraque e gostava de discursos. A mania do fraque passou, mas o gosto do discurso persiste, apesar da campanha de ridículo da nova geração de jogadores de box, football, verso livre e outros esportes estrangeirados.

Todavia não há motivos para desesperar. Houve alguma melhora, sensível em raros sinais que não terão escapado ao observador arguto. Por exemplo: o voluntário silêncio que se impuseram as vocações oratórias da geração que anda agora pelos trinta anos. O senhor Edmundo Luz Pinto é uma dessas vocações. Em outros tempos teria o renome de um grande orador. No entanto vive caladinho. Prefere fazer carreira por outras qualidades mais frias da inteligência. Assim os outros.

A geração anterior é que ainda não entregou os pontos. Volta e meia, e quando menos se espera, surge uma metáfora das brabas, um efeito como aquele do doutor Sampaio Correia no enterro de Amoroso Costa, o nosso grande matemático vítima da catástrofe do Santos Dumont*:

- Tão modesto na morte como o fora em vida, quis que o seu corpo fosse o último a aparecer...

Pois essa mania do discurso bonito foi o senão das solenidades com que se festejou a passagem do presidente Hoover. A recepção em si foi perfeita. Três dias de sol maravilhoso, sem grande calor. Programa folgado e bem escolhido. Ornamentação e luzes festivas sem excesso. Atitude do povo boa e discreta, como costuma ser a do brasileiro quando não está assanhado por amores.

Mas os discursos oficiais tiveram um derramado desagradável, uma falta de medida muito contrastante com o ar "all right let's go away"** do ex-comissário do Abastecimento Hoover.

Todos os discursos abusaram da nota sentimental, como se houvesse o propósito de captar com blandícias o yankee "matter of fact"***. Rodrigo Melo Franco de Andrade, o redator do "Boletim Internacional" do O Jornal, teve a esse respeito uma boutade magnífica.

Não pensem, disse ele, que num tratado de valorização do café o senhor Hoover transigirá "por simpatia, atendendo às relações que existiram entre Jefferson e o estudante brasileiro José Joaquim da Maia em 1786".

Um pouco de reserva, de resto bem compatível com a mais perfeita cordialidade, não fazia mal nenhum nas condições atuais em que a política do continente se orienta para uma volta difícil com a feição imperialista que vem tomando a civilização norte-americana. Eu sou dos que acreditam no perigo americano. Vejo no imperialismo da grande República uma força a que só a revolução social poderá fazer frente. Ora, os entendidos em questões econômicas acham com boas razões que o capitalismo americano ainda está longe da crise decisiva e terá ainda pelo menos um século para crescer.

Mesmo que o senhor Hoover partisse daqui muito enternecido pela paisagem carioca e pela lembrança das relações entre Jefferson e o estudante brasileiro, o seu sentimento individual nada valeria contra a força da plutocracia yankee, autocaminhão pesado em plena embalagem.

O que se passou com o presidente Wilson é bem significativo. O mundo inteiro via nele um idealista meio ridículo, embora em sua terra houvesse quem o considerasse, ao contrário, um hipócrita consumado.

Como quer que seja, antes da presidência ele pronunciava estas palavras memoráveis que um sul-americano desconfiado (o publicista uruguaio J. L. [...])**** assinalou para desengano dos abencerrages da democracia:

"Não é o povo que governa. Os patrões do governo são os capitalistas e os manufatureiros combinados. O governo dos Estados Unidos é o filho do peito de interesses especiais. Um império invisível estabeleceu-se por cima das formas democráticas. Estamos colhidos na engrenagem de um sistema econômico desapiedado".


O próprio governo de Wilson ilustrou com mais um exemplo essa advertência que nenhum sofisma pacifista pode obscurecer. Wilson foi colhido na engrenagem sem entranhas. Os casos do Haiti, do México, de São Domingos, da Nicarágua aí estão mostrando a potência inelutável de uma civilização a que mil interesses anônimos e formidáveis deram uma aceleração que só outras forças sociais igualmente formidáveis poderão contrastar. Enquanto elas não se levantam seria ao menos decente uma atitude de reserva e de humour em face de manifestações sentimentais de simpatia continenal. Eu bem sei que nessa matéria o brasileiro também é malandro... E quando o Utah saía barra fora, o carioca do cais gritou pra ele:

- Adeus, Hoover! Até amanhã se não chover!...

Publicado no periódico A Província, 11 de Janeiro de 1929.

_______________

* Trata-se da queda do avião Santos Dumont, em 1928, quando morreram todos os seus ocupantes, na baía de Guanabara, por ocasião de homenagens a Alberto Santos Dumont, que chegava da Europa.

** Em inglês, "tudo bem, vamos embora".

*** Em inglês, "trivial".

**** Este trecho está ilegível no jornal.


BANDEIRA, Manuel. Crônicas Inéditas I: 1920-1931. São Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 155-158.

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