segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Estou lendo "Fausto", de Goethe

Nada mais atual do que um clássico!

Somos, no geral, culturalmente medíocres. Nosso pouco conhecimento da história nos permite cometer auto-enganos, como, por exemplo, identificar problemas "atuais" com problemas do "agora". Qual não é nossa surpresa quando "encontramos" em textos como Fausto - cuja escrita Goethe terminou em meados de 1830 - elementos que seriam recuperados, por exemplo, pela Escola de Frankfurt, na segunda metade do século XX. De Shakespeare a Goethe estes elementos estão postos: a relação entre as determinações essenciais do modo capitalista de produção e a produção cultural humana. E a gente lidando com isso até hoje. Segue a exposição dos dilemas do romântico poeta com a exigências da arte como comércio.

DIÁLOGO PRELIMINAR (Um teatro ambulante, ainda em início)

O empresário, o poeta (homem idoso) e o gracioso da companhia


EMPRESÁRIO

Amigos! (que ambos vós já bastas vezes

nas aflições e apertos me salvastes)

vingará na Alemanha a nossa empresa?

Quero agradar ao público, e preciso,

que o público é real, e eu vivo dele.

Demos que está já pronto o barracório,

o teatrinho armado, e cada ouvinte

no seu lugar, ansioso de festança.

Repimpam-se, arqueando as sobrancelhas;

Vêm todos com tenção de embasbacar-se.

Eu na arte de embair não sou dos pecos;

hoje, porém, confesso, estou com susto.

Não anda o povo afeito a mãos de mestre,

mas lê, lê muito; um ler que mete medo.

Como hei-de eu conseguir que ele ache em tudo

novidade, substância e graça às pilhas?

‘Stou nas minhas três quintas quando vejo,

acudir-me gentio às rebatinhas,

chegar ainda com dia, antes das quatro;

atirar-se ao balcão do bilheteiro

como em tempo de fome à padaria,

e esmurrarem-se à pesca de um bilhete.

Milagre tal em tão mesclada gente,

só poetas de truz. Toca a tenta-lo!


O POETA

Não me fale do populacho,

a cujo aspecto a inspiração desmaia,

remoinho humano, que nos leva à força.

Ascenda-se ao recesso aberto a poucos,

ao mundo celestial da fantasia,

onde poetas só têm gozos puros,

onde amizade e amor com mão divina

a paz do coração produzem, velam.

O que então do imo peito nos prorrompe,

e nem sempre na voz logra exprimir-se,

embrião, que talvez contém portentos,

que vezes não o afoga a actualidade!

Mas não raro igualmente esmeros de arte

do diuturno desprezo alfim triunfam.

Quem de brilhos se apaga abdica os evos.

Vão à posteridade as obras-primas.


O GRACIOSO

Mas que é posteridade, ou que te importa?

Não trate eu de agradar aos com quem vivo,

ao cheiro do louvor dos porvindouros!

Quem nos pede folgança é o nosso povo;

fartemo-lhes a vontade. É boa gente,

e gente que se vê. Na alternativa

entre ausente e presente, este é quem ganha.

Como lhe hás-de agradar? mui facilmente.

Quem deseja com gosto ser ouvido

há-de aos gostos da turba se acomodar-se.

Quanto mais auditório, mais efeito

fará nele o protótipo de gênios,

que, dando rédea larga à fantasia,

lhe leva a par o sólito cortejo

de afetos, de paixões, de luz, de graças...

e, para adubo, um grão de extravagância.


EMPRESÁRIO

Muita ação sobretudo. Os circunstantes

querem ver e mais ver. Chovam sucessos

uns sobre os outros a flux. Folga a plateia,

na curiosa abundância embasbacada;

entra o poeta em moda, e cresce em fama.

Pela turba é que a turba se conquista:

cada qual tem seu gosto; o que um refuga,

outro vem que o prefere. Assim, dar muito

cifra a receita de agradar a todos.

Armar de peças mil uma só peça

é que é o non plus ultra; afortunado

o poeta que o logra: é mestre cuque

de chanfana afamada entre os fregueses.

Há comédia que chegue a um embrechado,

que se arma, enquanto o demo esfrega um olho,

e enquanto esfrega o outro, se desmancha?

O compacto! A unidade! História; petas.

Que vale ao ramalhete ser tuchado,

se a crítica lá está que ri do junco,

e uma a uma das flores lhe desfolha?


O POETA

Mas que ignóbil mister! que oprobrioso

Para artistas de lei! Já nós lá vamos?

Já se admite a aldrabice desses tunos,

Que dão gato por lebre em coisas d’arte?


EMPRESÁRIO

Barro o sarcasmo. O artífice de joias

convenho em que se esmere em ferramenta;

achas, quem quer as faz co’uma podoa.

Apuros, para quê? Para que ouvintes?

Este vem aborrido, aquele impando

de festim lauto; e, o que é pior, não poucos

da Babel jornalística aturdidos.

Vêm aqui, como vão às mascaradas:

matar tempo; açodados, porém frios...

curiosos, quando muito. E as damas? Essas

trá-las o empenho de assoalhar os luxos;

são atrizes gratuitas; são figuras

que só trabalham pelo amor da glória.

Já basta de quiméricos Parnasos.

Obténs enchentes; aplaudem-te; vês nisso

motivo de ufanar-te? Observa atento

a gente que em Mecenas se te arvora:

metade dela é fria, o resto bronco.

Um tomara-se já no fim da peça,

para se ir ao baralho que o namora.

Outro está já na ideia pregustando

a noite que vai ter entre os abraços,

no seio nu de delirante Frine.

Para relé tão pífia invocar musas!

valha-vos Deus, basbaques da poesia!

Se agradar pretendeis, teimo na minha:

adi ação, mais ação, ação que farte.

O ponto é pôr os cérebros num caos;

contentá-los em cheiro era impossível!...

.......................................................................

(Vendo o poeta quase a ponto de se ir em delíquio)

Que tens? É pasmo? É êxtase? São dores?


O POETA

Deixa-me, por quem és; busca outro escravo!

Para ajudar-te na tua perversa empresa

de arrancar no mundo o siso, o gosto,

querias que o poeta assim brincando

seus foros naturais renunciasse?

Como é que ele os afetos senhoreira?

Com que poder subjuga os elementos?

Não será coa harmonia entre ele e o mundo?

Ele a absorver do mundo as maravilhas,

E a expandi-las depois com brilhos novos?

Enquanto indiferente a natureza

vai torcendo no fuso o eterno fio,

e a tão discorde multidão dos entes

se entrebate estrondosa e dissonante;

quem vos tira a expressão pela fieira,

e a vivifica e a inunda de harmonias?

Tantos entes diversos, desconjuntos,

quem os une em convívio harmonioso?

Quem transforma paixões em tempestades?

Quem acende arrebóis na mente escura?

No caminho da amada quem semeia

as flores mais louçãs da primavera?

Quem de tênues folhinhas entretece

C’roa, que a todo o mérito permeie?

Quem funda Olimpos? Quem despacha deuses?

A força do homem, convertida em estro.


O GRACIOSO

Bem! Pois saca proveito dessa força!

Dê coisas de substância a tal poesia

- mal comparado – à laia dos namoros:

Encontram-se uma e um; foi mero acaso.

Há simpatia; ninguém sabe o como.

Nenhum pensa em fugir, nem quer, nem pode.

Vão, mole-mole, uns laços invisíveis

Prendendo os corações. Cresce o deleite;

dá-se às invejas pasto; acordam zelos;

principia a amargura; e quando a gente

mal de precata, armou-se uma novela.

Ouve um conselho!

Imagens a granel; clareza pouca;

erros mil; de verdade um raio apenas.

Oh que misto! Oh que pinga saborosa!

Ninguém há que a não trague, e que a não louve.

A flor da mocidade então se apinha;

espia o desenlace; exalta a peça,

onde crê ver inspirações divinas.

Cada alma terna então sorve com ânsia

suave melancólico alimento;

ora isto, ora aquilo a impressiona;

cada um vê na cena o que em si acha;

ei-los prestes às lágrimas e aos risos;

à audácia, à execução vozeiam loas.

São de ruim contento os Padres Mestres.

Noviços, qualquer coisa os enamora.


O POETA

Já vão longe os meus tempos de noviço,

manancial de cânticos perenes,

ignorância do mundo, inexperiência

que num botão de flor Édens previa.

Então sim, que topava em cada vale

boninas que ceifar. Eu nada tinha...

e tinha tanto!: o anelo da verdade,

cobiça d’ilusões.

Oh! Restitui-me

esses doutrora indômitos impulsos:

a dita agridulcíssima; a energia

do aborrecer, do amar. Oh! restitui-me,

se podes, restitui-me a mocidade!


O GRACIOSO

A mocidade, meu amigo, é boa

Para coisas que eu sei: - Num contra muitos,

por exemplo, é boníssima. – No aperto

de nos saltear um rancho de moçoilas,

à porfia a pender-se-nos do colo,

é mais que boa, é ótima. E no curso,

quando o premio além-meta nos acena,

mas indo ao longe! E quando, ao fim da valsa

rodopiada, frenética, se deve

levar o mais da noite em bona-chira!

Agora lançar mão das áureas cordas,

costume vosso antigo, e dedilhá-las

com graça e fogo, volitar no rumo

de assunto que vos praz... senhores velhos,

ninguém vo-lo proíbe; é jus da idade;

e nem menos por isso vos honramos.

Diz que a velhice é nova infância! História;

não é tal; continua a infância antiga.


EMPRESÁRIO

Basta de altercações; queremos obras.

Venha coisa que sirva. Eu cá não creio

no que dizeis de estar-se ou não disposto.

Todo esse rodear de palavrório

só diz: míngua de veia; é procurá-la.

Quem uma vez se recebeu coa musa,

Ganhou jus marital; resiste? Obrigue-a.

Sabeis o que se quer: bebidas fortes;

fermentá-las, e já. Quem não fez hoje,

amanhã não tem feito; um dia é muito.

Audácia pois! Agarra pelas repas

a ocasião fugaz; não tens remédio,

segue-a no voo, e está logrado o empenho.

No teatro alemão tudo se admite,

bem sabeis; nada pois de acovardar-te.

Pede afoito cenários, maquinismos,

lua, sol, astros, água, luz, rochedos,

feras e aves sem conto. Na barraca

podes meter a criação em peso.

Voa sem confusão, desde o supremo

Empíreo, à varia terra, ao negro inferno!


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