segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Carta a Stalingrado - Carlos Drummond de Andrade

















Nós somos uma geração medíocre. Lembro de ter lido em algum lugar que, diante do resultado horroroso da Segunda Guerra Mundial, os filhos dos europeus - especialmente naqueles países em que o fascismo dominou - não perdoaram seus pais por terem permitido tamanha atrocidade e se dispuseram a tentar tomar a história em suas mãos e contribuir para o projeto social da emancipação humana. Conseguiram? Não completamente! Transferiram este desafio e esta responsabilidade para as gerações seguintes, mas não sem legado. Haja vista a efervescência político-social do período dos anos 50 ao final dos anos 70. E nós? Não estamos ainda à altura do desafio. Não temos condição de escapar: a radicalidade das dificuldades estão na mesma medida da demanda das suas soluções - para problemas radicais, saídas radicais.
O individualismo nos massacra e impede que tenhamos dimensão da exigência histórica. Isto lembra a imagem evocada por Walter Benjamin do "encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa" na sua 2° tese sobre o conceito de história, que, por sua vez, alude à assertiva de Marx, segundo a qual "o morto domina o vivo".
Cada um de nós sofre a condição de mera personificação do capital e, diante das graves contradições, há aqueles que se põem em luta e há aqueles que esperam um milagre. Não há espaço para neutralidades: não assumir conscientemente posição é já tomar posição.
Carlos Drummond nos permite resgatar o sentido da força do coletivo, a transcendência do indivíduo no projeto societário. A "Carta a Stalingrado" é uma ode ao mesmo tempo linda e temorosa diante da ação coletiva de seres humanos em defesa de um mundo melhor. O horror da guerra não permite galanteios nem meias palavras. A crueza da imagem poética é a expressão do inescapável fardo do tempo histórico, como nos diz Mészáros.
Fica, então, o elogio de Drummond à força do povo soviético, que feriu de morte o nazismo e é muito pouco lembrado na história do século XX. Horror e glória mesclam-se neste canto quase elegíaco à esperança.

"Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem."

Andrade, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. Record: São Paulo, 2001.

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado pelo poema Stalingrado.
Muitos já esqueceram, ou. nunca ouviram falar.
Mas o símbolo heróico daquela cidade viverá para sempre.