quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O Revisor do "S Ponto" e seu Final Feliz

Arapuã
Começou em jornal na então avenida Irradiação (hoje, Tiradentes), junto ao Mercado Municipal de São Paulo, em 1950. Era um prédio com mais de quinze andares e, no 7º e 8º, funcionavam, respectivamente, o Deutsche Nachrichten e o Diário de Notícias. O Diário era dirigido pelo Galeão Coutinho, um homem que ele admirava por vários motivos. Um deles: era o autor do romance Simão, o Caolho. Outro: ostentava uma basta e ondulada cabeleira branca. Num dos pontuais desastres do desastroso DC- 3 da Real Aerovias, a alva cabeleira de Galeão ficou espetada como um escalpo na ponta de um galho de árvore. Também admirava Galeão como profissional implacável. Uma noite, terminara de ler uma matéria em português ainda mais pobre que esta que o privilegiado leitor deste mimoso magazine ora saboreia. Chamou o autor à sua mesa. O asno chegou, e Galeão Coutinho espichou-lhe as duas laudas datilografadas:
– Faça-me o favor: vá ao banheiro com esta sua matéria e volte dele sem ela.
Recomendado por Elias Miguel Raide, jornalista bom e contista ansioso, começou no Diário como quinto suplente de revisor. Só ganharia se faltassem cinco revisores. Geralmente, nenhum faltava.
Não sei como imaginar isso, mas o Elias ganhava ainda menos que ele – e os dois, com quase oitenta centavos sobrando nos bolsos, subiam para um sobrado da família Adams na Rua 25 de Março e lá, numa mesa nua e furada de cupim, devoravam o prato fundo, cheio de trigo preparado como arroz. Única refeição diária, mas, eles babavam diante do grão de trigo gordo, grande, cozido. Custavam sessenta centavos os dois pratos, dele e do Elias. Caros, porém cozinha internacional (síria) de primeira.
Chefe da revisão, Itamaraty Feitosa Martins queria ajudar, mas os titulares não ajudavam: nunca faltavam, e, naqueles dias, dois, cinco cruzeiros que ele pusesse nos bolsos eram como cocaína na veia – delirava com a dinheirama.
Elias dizia, agachado de rir, que pobre como nós só bóia quando vem a enchente, e acrescentava:
– Graças a Deus, sou católico, posso engolir a hóstia, ainda é grátis.
O suplente morava em pensão, na suíte de luxo com bolor exclusivo e janela abrindo para o beco. Havia, também, suítes de umidade executiva, com direito a tuberculose se o pensionista morasse por mais de seis meses. Além dessas acomodações especiais, as pensões ofereciam quartos comuns, com uma cama – e quatro paredes encostadas nela.
À noite, quatro num cubículo, dormia-se ao som do ronco tonitruante de um deles, e com o vento gaseificado da liberação sem pudor dos outros dois. Dante Alighieri, ali, era Cecília Meireles. Pelo grunhir, um chiqueiro – pelo odor, um esgoto. Mas o que eram os roncos e os gases, se comparados à comida servida todos os dias? Temia que fosse verdade o que dizia o Lívio Abramo: pobre só vai para frente quando o cassetete acerta na nuca.
O quinto suplente aparecia todas as noites e olhava a revisão. Olho comprido, de dar torcicolo em um ou dois titulares. Ansiava por uma epidemia, paralisando em suas residências, por uma semana que fosse, os titulares cus-de-ferro. Um sarampo medieval, uma catapora purulenta prostrando todos na cama – mas, sem matar. Não queria subir na vida matando titulares da revisão. Não veio a epidemia, mas veio o Feitosa Martins. Faltou ao serviço somente um titular, mas o Feitosa pediu aos outros quatro suplentes que o deixassem trabalhar.
Finalmente, estava no umbral para ingressar no jornalismo sério, o jornalismo de Wainer, dos Abramo, Frias, Barbosa Lima, Nelson Rodrigues, Ponte Preta, Sacchetta: ia fazer uma revisão. Quando o texto chegou, tomou-o nas mãos, trêmulo. Com o revisar da notícia, ele estaria trabalhando em jornal, já seria praticamente um jornalista. Terminada a revisão, alcançaria o panteão dos “jornalistas calejados”, como o Joel Silveira. Foi ao texto como vai o jovem noivo alucinado ao corpo da sua noiva virgem (naquela época), na noite de núpcias. Ansiava por se atracar com o hímen do primeiro erro, qualquer erro.
Pior que a morte, brochar sem corrigir. Precisava revisar, ansiava por usar o lápis em alguma linha do texto, marcar o erro, puxar para a margem e cifrar a correção feita por ele. “Feita por ele” – isso ressoava na sua alma inquieta. Mas e se aquela composição relativamente curta fosse toda correta, sem erro algum? Como salvar sua carreira de jornalista, com uma tragédia dessas logo no seu tiro de partida, revisar sem encontrar qualquer erro? Os titulares da revisão, no dia seguinte, diriam, com olhar superior:
– Suplentes! E querem trabalhar.
Queria o tumor do erro, extirpá-lo com a ponta cirúrgica do seu Johann Faber. Meia hora depois de iniciada a grande tarefa, Feitosa passou como quem não quer nada e espiou o trecho de texto. O futuro revisor colocou a mão como se fosse escrever algo, mas tentava esconder o tamanho da prova: dezoito míseras linhas sobre a nomeação de um funcionário da prefeitura, e todas elas sem nenhuma correção. Pensando bem, nem era notícia, mas, para o quinto suplente de revisor, era a manchete do dia:
MÉDICO NOMEADO PELA PREFEITURA DE SÃO PAULO
Leia mais detalhes no texto abaixo, revisado pelo renomado jornalista Raimundo Cavalcanti.
Nada mal, como começo de carreira. Feitosa deixou que o senso de amizade triunfasse sobre o dever da chefia – e seguiu adiante, para outra banca. Ele prosseguiu, febril, no trabalho de impiedoso cata-piolho. Parava em alguma palavra, pronunciava-a baixinho, uma, duas, cinco vezes: era o desespero por uma dissonância que o autorizasse a tacar o lápis e deixar a marca do seu vibrante jornalismo, uma arma do povo.
Onde estava aquele encontro de duas vogais sem o hífen? Cadê o verbo no tempo errado? Onde a palavra “prefeitura” grafada “perfeiturta”? Quando toparia com o encontro consonantal equivocado? Em que frase está o período intercalado que faz esquecer a conjugação verbal principal? Onde “a maioria... sentiram”? Cadê o erro, cadê? Achar um erro parecia mais difícil que levantar impressões digitais na água de uma piscina.
– Meu prato de trigo cozido por um erro − desesperava-se o suplente.
Sonhava, como sempre: muitos trotskistas e vendedores de maçã do amor lhe diziam que era preciso ter os pés no chão, como eles.
– Quem tem os pés no chão, é porque está sentado no vaso − retrucava, fulo.
Como restassem cinco ou seis linhas, o destino parecia traçado: caminhava para uma calamidade, uma tragédia para o resto da sua vida. Nem mesmo a ababelada suposição de que, não encontrando erro, poderia se inspirar e escrever algo parecido como The Nigger of the Narcissus ou outro desesperado E Agora, José? (E Agora, Raimundo?), mas, lá no fundo, sabia que se escrevesse algo baseado em sua tragédia seria um pequeno conto recusado por todos os editores: Um Dia de Cão.
Jamais seria jornalista. Como ser jornalista, se não principiasse a sê-lo naquele fluxo de língua portuguesa sem falhas, perfeito na gramática, impecável na ortografia, demoníaco?
Maldição.
Agora, já lia xingando o texto, desacreditando na profissão, tão cedo e já tão abatido pelo revés do jornalismo sério. Era a última linha do texto da notícia, e ele a releu pela sétima vez:
A cidade de S. Paulo conta, portanto, desde hoje, com o trabalho competente do Dr. Severo Almeida Gomes.
Cortava o coração: nem o nome do infame funcionário o redator escrevera errado. É sempre assim, filosofou, os certinhos ferrando os bons e errados, como ele. Viu o seu fim. Esmagado, levantou o papel da prova para passar adiante com a sua assinatura de revisor-substituto da hora, quando uma palavra saiu do texto, pairou, brilhando, acima dele, como um halo santo: um erro! Uma onda quente de felicidade invadiu o quinto suplente. Retornou a prova à banca, seguro do que fazia, um jornalista no melhor do seu desempenho profissional. Consciente, grave, maduro.
Tomou o lápis, olhou sua ponta, foi ao apontador, montado no fim da mesa, deixou rodar e cair finas volutas de madeira ondulada no chão. A ponta parecia luzir, fina e severa. Apoiou a mão para firmar o papel impresso, fez um risco pequeno, forte e vertical no S da palavra S. Paulo e, na margem, à mesma altura da linha daquela abençoada palavra, corrigiu, compenetrado e capaz: São.
Nada de “S ponto”. O certo, no jornal, era o São por extenso, tinha certeza: nada de “S. Paulo”, revisado pelo nomeado jornalista para “São Paulo”. Vitória! Começava de maneira magistral sua carreira no jornalismo. No dia seguinte, apanhou o jornal, um exemplar da redação, folheou e procurou, impressa, a notícia que ele revisara. Temia ejacular, quando lesse a nota revista por ele. Melhor do que Fla 6 x Flu 1.
Ofegante, coração aos pulos como um botafoguense dopado, desceu para o pé da página e lá estava a notícia. Os olhos pularam para o trecho final, no qual ele topara com a glória do S ponto. Olhos molhados, percorreu a linha final para ler o São Paulo da sua autoria. Lá estava:
A cidade de S. Paulo conta, portanto, a partir de hoje com o trabalho competente do Dr. Severo Almeida Gomes. S ponto.
Nunca mais ele apareceu na redação. Dizem que foi trabalhar num circo, limpando os aposentos do elefante e, como jornalista, escrevendo, com giz branco e molhado, numa lousa negra fora da lona, informando preço da entrada, meia-entrada e senhoras acompanhadas, eufemismo para amasiadas.
No pé da lousa, uma discreta rubrica: R.C.
Assinava aquela notícia em giz, o máximo que conseguira na profissão jornalística. E era feliz: afinal, nem todos nascem para Samuel Wainer!
Fonte: Revista Piauí

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